A reposição hormonal cruzada em homens transgênero é realizada com qualquer uma das preparações de testosterona aprovadas para uso em homens cisgênero com hipogonadismo. O objetivo é a virilização e a amenorreia, mas alguns eventos adversos podem acontecer, como a eritrocitose, consequente ao estímulo da eritropoiese pela testosterona.
Desta forma, orienta-se que o hematócrito (Ht) seja vigiado durante a reposição e que, diante de níveis acima de 54%, a testosterona seja suspensa. Após 3 meses, caso o hematócrito tenha normalizado, pode-se reiniciar a reposição, mas com a dose ajustada.
Da mesma forma, é preciso controlar e combater fatores de risco que estão classicamente associados ao aumento do hematócrito, como o tabagismo (bastante prevalente entre homens transgênero) e a síndrome da apneia obstrutiva do sono.
Também é importante salientar que o aumento do hematócrito costuma ser mais expressivo nos primeiros meses de reposição, tendendo à estabilidade quando se aproxima de 12 meses. Além disso, não há evidência de que a eritropoiese em homens transgênero esteja associada a desfechos desfavoráveis, como eventos cardiovasculares ou fenômenos tromboembólicos.
Na verdade, recente estudo publicado no The Journal of Clinical Endocrinology & Metabolism demonstrou que a erotrocitose em homens transgênero parece ser mais rara do que se imaginava.
O estudo chama a atenção pelo tamanho da amostra (6670 homens transgênero), algo pouco comum em estudos envolvendo a população transgênero. A análise, de caráter transversal, foi realizada na América do Norte e encontrou uma prevalência baixa de eritrocitose: apenas 0,9% da amostra tinha Ht maior ou igual a 54%.
Como era de se esperar, os níveis de hematócrito foram mais altos naqueles indivíduos com níveis maiores de testosterona total: a média foi de 41,84% naqueles com níveis de testosterona mais baixos (< 50ng/dl) e de 45,68% naqueles com níveis no limite superior da normalidade (900 – 949 ng/dl). Mas mesmo nestes pacientes com níveis mais altos, a média do Ht não configurou um quadro de eritrocitose.
Ao comparar as vias de administração de testosterona (transdérmica versus intramuscular), o nível médio do hematócrito foi menor quando a via transdérmica foi utilizada: 43,41% versus 44,96% (p < 0,001). Mas mesmo sendo estatisticamente significativa, esta diferença foi pequena.
Os autores concluíram, então, que a prevalência de eritrocitose entre homens transgênero em uso de testosterona é baixa, o que torna a prescrição ainda mais segura e confortável.
Embora o estudo tenha limitações, como por exemplo não fazer uma avaliação longitudinal do hematócrito ao longo da reposição, ele reforça que o efeito colateral mais comentado e vigiado da reposição de testosterona no homem transgênero é, na verdade, mais raro do que se imaginava. Desta forma, a balança do risco versus benefício associada a esta intervenção, pende ainda mais para o lado do benefício.